Ine Kusumoto: a tempestade perfeita?
Ine Kusumoto era uma mulher que tinha tudo para dar errado.
Ela era alguém que a sociedade japonesa certamente iria rejeitar e desprezar totalmente. Filha de uma (suposta) cortesã e um estrangeiro, nascida no Japão do século 19. Se ainda hoje o país é extremamente conservador e desconfiado de estrangeiros, imaginem como era naquela época!
E Ine Kusumoto, apesar de tantas desvantagens, conseguiu tornar-se médica, ser mãe solo e ganhar muito respeito e admiração da sociedade em geral. Como isso foi possível?
Panorama histórico
Nos anos 1800, ainda vigorava no Japão a política isolacionista do sakoku (“país fechado”). Apesar do nome, isso não queria dizer que o contato com outras nações fosse totalmente bloqueado. O comércio exterior existia, mas era rigorosamente limitado. A ilha de Dejima era o único lugar em todo o Japão onde estrangeiros podiam entrar e circular, com raríssimas exceções. Os japoneses “comuns” também dificilmente tinham permissão para entrar em Dejima. A sakoku buscava, entre outras coisas, impedir que idéias e costumes estrangeiros influenciassem o povo japonês.
Os pais
O pai de Ine Kusumoto era Philipp Franz von Siebold, brevemente retratado em nosso texto sobre japanófilos. Curiosamente, embora Ine tivesse o apelido de “Oranda O-Ine” (Ine da Holanda), seu pai era alemão. O engano aconteceu porque ele estava a serviço dos holandeses, que detinham exclusividade no comércio com o Japão na época. Ambicioso, inteligente e habilidoso em relações interpessoais, Siebold veio ao país disposto a fazer nome como médico e cientista. Conseguiu estabelecer contatos e fez amizades com japoneses apesar das dificuldades impostas pela sakoku. Com isso, obteve uma quantidade gigantesca de informações, que mais tarde o tornaram um “especialista em Japão”. Também foi graças a esses contatos que Ine obteve oportunidades impensáveis para uma mulher dessa época.
Taki Kusumoto, a mãe de Ine, era uma cortesã que foi enviada a Dejima para ser concubina de Siebold. Entretanto, há dúvidas sobre esta parte da história.
Ao que parece, Siebold insistiu em ter uma concubina virgem porque temia pegar sífilis. Além disso, em carta à sua família, ele teria mencionado que Taki era de família nobre. Entretanto, como há pouca informação comprovada sobre ela, não dá para se ter certeza de nada.
De qualquer forma, tudo indica que, no final das contas, Siebold acabou amando Taki de verdade. Ou, pelo menos, passou a considerá-la como mais do que uma simples “companhia temporária”.
Ine nasceu em 1827, quatro anos depois que Taki se tornou concubina de Siebold.
O caso Siebold
Quando Ine completou dois anos de idade, seu pai foi expulso do Japão, acusado de traição. Sempre ávido por conhecimento, Siebold colecionava não só espécimes de plantas e animais, mas também todo tipo de objetos. Entre esses itens estava um mapa, que conseguira com um cartógrafo da corte japonesa.
No Japão do século 19, um estrangeiro apossar-se de um mapa (que poderia conter informações estratégicas) era algo gravíssimo. O cartógrafo foi condenado ao seppuku(*) e Siebold, expulso do país.
Por causa da lei vigente na época(**), Siebold não pode levar Taki e Ine consigo para a Europa. Entretanto, ele cuidou para que ao menos elas ficassem financeiramente amparadas. Era sua obrigação, claro, mas os registros indicam que Siebold foi bastante generoso. Seus amigos se comprometeram a cuidar delas e informá-lo de qualquer necessidade.
Uma mulher independente
Ine herdou do pai o gosto pela Medicina. Porém, mulheres japonesas daquela época não tinham acesso a uma educação científica. Estudavam o básico e, se fossem nobres ou ricas, talvez pudessem se dedicar à Literatura, mas não profissionalmente. Embora não houvesse uma proibição formal, a sociedade impunha obstáculos. A prioridade máxima da mulher no antigo Japão era casar e ter filhos, ponto.
Felizmente, Ine escapou a essa regra.
Durante os anos passados no Japão, seu pai tinha fundado uma escola de medicina ocidental. Vários de seus alunos ajudaram na educação de Ine. Mais tarde, iriam também apresentá-la a pessoas importantes, que se tornariam seus pacientes.
Aos dezoito anos, ela começou a estudar obstetrícia com um ex-aluno de seu pai, Ishii Soken. Em 1851, Ine engravidou e precisou interromper os estudos. Ela deu à luz a uma menina, Takako. Embora Ine nunca tenha revelado nada a respeito, suspeita-se que Ishii Soken a estuprou. Soken tentou retomar contato com ela, chegando a propor casamento, mas foi rechaçado com firmeza.
Ine continuou a estudar após o nascimento da filha, deixando a bebê aos cuidados de Taki. Ela se tornou discípula de vários ex-alunos de seu pai, mas nunca voltou a falar com Ishii Soken. Também nunca se casou, preferindo criar Takako apenas com ajuda de sua mãe.
Ventos da mudança
Em 1854, com a abertura do Japão ao ocidente, a política do sakoku deixou de existir. Passados alguns anos, Siebold finalmente conseguiu retornar ao país. Após tanto tempo, muitas coisas tinham mudado, claro. Ele, assim como Taki, havia se casado novamente e formara uma nova família. Apesar disso, Ine reencontrou o pai e morou com ele por algum tempo. Ela conheceu seus meio-irmãos, Alexander e Heinrich, com quem manteve boas relações por toda a vida.
Ine foi construindo sua reputação e, aos poucos, ganhando pacientes e elogios da comunidade médica ocidental no Japão. Sua competência e habilidade chamaram a atenção de pessoas importantes como Date Munenari, um nobre daimio (***) de Uwajima. Ele a contratou como médica exclusivamente das mulheres de sua família.
Mas o ponto alto da carreira de Ine foi em 1873, ao atender ao parto da consorte do Imperador Meiji. Pela primeira vez na história, uma mulher de origem “impura”, praticante de medicina ocidental atendia um membro da família imperial.
A tempestade perfeita
Provavelmente a vida de Ine Kusumoto seria muito diferente em qualquer outra época. Pode-se dizer que ela nasceu na hora certa.
A formação profissional de Ine aconteceu num vácuo entre a queda do shogunato Tokugawa e a consolidação da era Meiji. Foi um período em que antigas regras eram abandonadas, mas ainda não se sabia bem quais seriam as novas regras.
Naquele breve momento, gênero, origem e status social tiveram menos importância que competência e talento.
Após a consolidação da era Meiji, essa janela de oportunidades se fechou. Quando as novas regras foram totalmente entendidas, viu-se que não eram tão diferentes das antigas. Afinal, europeus eram tão preconceituosos quanto japoneses, a única diferença era o jeito de expressar.
Fora desse curto período de liberdade, uma mulher inteligente, talentosa e independente como Ine teria sido execrada. Iriam criticar sua “rebeldia” por não se casar e querer “fazer trabalho de homem”. Desprezariam seu “sangue impuro” e a medicina estrangeira que ela praticava. Nunca lhe dariam uma oportunidade real de provar o seu valor.
Porém, naquele período de grandes mudanças, ninguém sabia com certeza o que era condenável ou não. E por isso, Ine conseguiu o que parecia impossível.
Felizmente, ela nasceu na tempestade perfeita. Com certeza enfrentou muitas dificuldades, mas quando se abriu aquela janela de oportunidades, soube aproveitar o momento como ninguém.
Ine Kusumoto faleceu em 1903, aos 76 anos. Estava realizada profissionalmente e desfrutou da companhia de família e amigos até o fim.
(*) seppuku: também conhecido como harakiri. Suicídio ritual.
(**) essa lei proibia filhos de japoneses com estrangeiros de sair do Japão.
(***) daimio: grande senhor de terras.
Fontes (sites):
Ine Kusumoto: a tempestade perfeita? publicado primeiro em https://www.genkidama.com.br
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